Magali Schmitt

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PAPO CABEÇA

©Freepik — Gente, minha luva furou! — Meu Deus do céu! — O que foi? — A luva dele furou! — Cortou o dedo? — Uhum. — Tá sangrando? — Um pouco. — Bota embaixo da torneira, rápido, e deixa escorrer bastante água. — Lava com sabão. — Que sabão, sua louca, deixa só a água escorrer em cima. — Ainda bem que é curtido na cachaça, assim não vai ser contaminado! — Olha quem falando... — Depois eu que sou a louca. — Não quero dizer nada, mas também já ouvi isso de que é bom lavar com sabão, mas sabão, sabão, não detergente. — Deixa eu ver aqui, ui, tá feio isso. — Parem que vocês estão me deixando assustado. — Não encosta nele, cuidado. — Aham, tô esperta. — Tá, agora estou me sentindo um leproso. — Ai, para, exagerado. — Uma vez me disseram que é bom ficar apertando o dedo embaixo d’água para o sangue escorrer logo. — Que idiotice, de onde saiu isso? — Ai, sei lá, que saco, não posso abrir a boca nunca...

RECOMEÇO

Era noite. Fazia frio. As luzes a essas alturas já deveriam estar acesas. Mas não estavam. Caminhei em direção ao ancoradouro. Os pés espalhando as folhas secas que repousavam sobre o concreto gelado. Eu estava inseguro. Na verdade, mais infeliz que inseguro. Apertei fortemente as mãos contra o corpo. Um pesado casaco de inverno era tudo o que eu possuía. Fruto da caridade alheia. Mas isto não me incomodava. Minha história era de sobras. Continuei andando. Era gostoso ouvir o ruído que meus pés produziam sobre as folhas. Daria um dedo por um cigarro naquele momento. O brilho da lua prateava a água e fazia meu pensamento ultrapassar limites. Na borda, me detive. Encostei-me à grade de segurança e fiquei por uns segundos a divagar, a imaginar que tudo podia ter sido diferente. Eu podia ser diferente. Podia não ter medo, soterrar as frustrações de uma vida inteira de lacunas em branco, silêncios e privações. Vinha sendo assim há 37 anos. De um modo ou de outro, eu era um h...

RETRATO DE FAMÍLIA

Essa é uma foto antiga da minha família. Do tempo em que meu pai se orgulhava de ter tido quatro filhos homens e minha mãe ainda não batia com as portas dos armários, as louças nem escondia a bola que caía no nosso pátio quando os moleques da rua jogavam pelada. Eu sou o quinto filho, ou a filha, com o braço no colo dela. Parece que já viemos ao mundo para acolher umas às outras. Nessa época, a vida não tinha acontecido de verdade. Foi antes do Luís André ser preso, o velho cair duro de infarto aos cinquenta e poucos, o Marcelo e o João virarem gigolôs e o Joaquim morrer de Aids. Eu também não tinha me formado em medicina e não cuidava da mãe, mulher consumida pelo remorso que chora toda vez que olha essa imagem. #minicontos #Microcontos #escritacriativa #autorasnacionais #mulheresqueescrevem #magalischmitt #literatura #leiamulheres #leiamais #miniconto © albertolopesleiloeiro.com.br

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