Euclydes foi o primeiro a chegar. As
tradicionais duas batidas secas à porta. O cabelo, alisado com brilhantina
barata, penteado para trás. A roupa gasta. Um gesto com a boca imita um sorriso
e deixa à mostra os dentes amarelados pela nicotina. Sua figura tosca parece
estar sendo apagada pelo tempo. Sabia que seria o primeiro. Pontual, sempre. Há
muitos anos, repetidamente.
Dou um passo para o lado e o deixo
passar, sem dizer palavra. Não temos muito a falar. Ele se afasta para evitar o
contato, o sorriso falso ainda pendurado no rosto. Segue em direção à sala de
estar. Busca sua poltrona preferida e senta-se em um dos braços. Vasculha o
bolso em busca de cigarro, tentando se ocupar para não me encarar. Sua simples
presença me irrita a ponto de despertar uma ira incontida. Sinto ímpetos de
esganá-lo, esbofetear sua cara, machucá-lo profundamente.
Caminho até a janela e fico olhando
para fora por um tempo que parece uma eternidade. A tarde está terminando.
Daqui a pouco o último resquício de sol vai tingir o céu de vermelho e púrpura.
Muriel não tardará a tocar a campainha. Seu jeito doce e calmo vai espantar
esta raiva. Sei que não me deixará romper o limite. Não desta vez.
Euclydes caminha até o bar e se serve
de vinho. Seu jeito abusado de se movimentar me enoja. Seu ar de eterno deboche,
de quem vive às custas dos outros é insuportável. Volto a atenção para a rua.
Lá está Muriel, abrindo o portão, trazendo uma sacola. Sempre agradável, educado.
O som da campainha é um alento.
Quase corro até a porta. Abro com um largo
sorriso. Ele me abraça, cheiroso, barbeado e bem penteado. Oferece a sacola,
com uma garrafa de vinho tinto de bom gosto escolhida com atenção. Retribuo o
abraço. Trocamos um olhar e faço sinal com a cabeça, indicando a presença de
Euclydes. Ele passa pela porta e vai até a sala, deixando o casaco no cabide,
como manda a etiqueta. Sem pressa observa o ambiente cuidadosamente preparado
com ar de aprovação. O cumprimento entre ambos é uma troca de olhar, seguido de
uma leve inclinada de cabeça. Muriel vai até a janela, as mãos nos bolsos da
calça. Contempla a rua e volta para sua poltrona, à esquerda.
Solto a garrafa na mesa de centro e
volto para a janela. Está na hora de Elana. Posso senti-la. Os passos leves,
quase flutuando, envolta em uma aura de mistério, tão enigmática, quase etérea.
Às vezes temo por ela. Temo que nos deixe, que seja levada por um anjo. Que
assuma sua verdadeira condição e nos abandone. Fecho os olhos. Um, dois, três.
Vai bater tão levemente à porta, num som tão delicado, que é preciso pressentir
sua vibração.
Me aproximo da porta e encosto o
ouvido. A mão direita espalmada sobre a madeira fria. Ela está chegando. Giro a
maçaneta com cuidado e abro a porta devagar ao primeiro toque. O cabelo longo e
ondulado se mistura com o vestido branco de algodão, formando uma mescla de
tons. A pele muito branca, de porcelana, sorri por todos os poros. Me beija na
face e segura as minhas mãos com firmeza. Sinto a sua força. Olha para a sala e
vislumbra os dois. Vai caminhar até eles e beijá-los. Vai sentar-se na mesa de
centro e mexer nos discos, fazer cachos no cabelo. Sua presença é um bálsamo a
todos.
Agora só faltam Vivian e Marcelo. Virão
juntos, claro. Não quero pensar de onde. Hoje não quero julgar. Ela estará bem-vestida,
esbanjando sensualidade e jogando com os instintos masculinos. Os cabelos
volumosos balançando ao menor movimento, deixando um cheiro doce no ar. Toda
voluptuosa. Sua presença me constrange, mas também fascina. Talvez gostasse de
ser ela por alguns momentos. Experimentar o poder de sedução, de inebriar os
homens. Ele, com seus inconfundíveis olhos castanhos, estaria logo atrás, o
braço forte delicadamente conduzindo a jovem pela entrada.
Se Marcelo pudesse ser engarrafado eu o
beberia todo, de um só gole. Sorveria até a última gota com prazer, com
luxúria. Me deixaria levar. Me perderia pelas veredas do pecado, sem olhar para
trás. Sem arrependimentos.
Olho para a sala. Todos me observam.
Euclydes com aquele sorriso odioso. Quero arrancar-lhe as entranhas aqui mesmo,
fazê-lo sentir dor. Baixo os olhos. Sei que Muriel lê meu pensamento. Sinto
vergonha. Vergonha pelo descontrole, por conspurcar o ambiente onde Elana está.
Desejo que Vivian e Marcelo cheguem,
para acabar com isto de vez. Há quantos anos estamos juntos... E eu sem coragem
de exprimir meus sentimentos e minha vontade, sempre me deixando dominar. Eles,
todos, mais do que ninguém, conhecem a minha alma. São a representação dos meus
desejos mais sórdidos, mais cruéis e mesquinhos. Viveram ao meu lado, se
esgueirando, me incitando, colocando palavras na minha boca durante todos esses
anos.
A última réstia se esvai no horizonte.
Ainda estou à porta. A casa está toda iluminada. Elana põe uma música suave.
Muriel serve duas taças do vinho que trouxe e caminha até onde estou. Estendo o
braço. Seu olhar diz que Marcelo não virá. Meu coração gela. Preciso de
Marcelo, preciso de todos. Ouço os passos de Vivian. Seu caminhar é diferente
do habitual. Ela toca a campainha. Abro a porta impassível. Ela aperta meus
ombros com força. Marcelo não vem.
Depois de anos, Marcelo não vem. Como
vou suportar sua ausência? Poderia perder até mesmo Elana, talvez Muriel... Com
Euclydes quem se importa? É um traste abominável. Sinto vontade de bater em
Vivian, quebrar seus ossos, senti-los estraçalhar sob minhas mãos, arranhar sua
cara bonita, desgrenhar seus cabelos. Onde está Marcelo? Não podem me tirar a
única inspiração. Ninguém parece se importar. Jogo a taça na parede. Um filete
cor de carne escorre a partir da mancha arredondada. É o sangue de Euclydes. Não
vou permitir que me dominem, não desta vez.
Vivian senta na sua cadeira de balanço,
deixando um rastro de perfume no ar. Muriel junta os cacos e se esforça para me
entender. Não quero ser entendida. Elana está tensa. Vou até o sofá e despenco.
Todos esperam por mim. Estão pressentindo algo, posso perceber em suas faces.
Esperam que eu dê a deixa, como se fosse possível a mim tomar uma decisão
sozinha. Na verdade, sei que são parte de mim. Não estou certa se quero
deixá-los.
— Pronta? — a pergunta me arranca do
transe.
— Não vou ter coragem.
— Vai, sim — ele diz suavemente,
colocando a mão sobre a minha perna.
— Marcelo não veio...
— E não virá, nunca mais. Apenas diga
adeus. Vou contar até três. No três, você abrirá os olhos e eles terão sumido
da sua vida. Para sempre.
©jr-korpa-unsplash
Comentários
Estive por cá a ler alguns textos e gosto da sua maneira intensa de escrever.
Uma escrita dura mas que se lê bastante bem pois é muito criativa.
Obrigada pela visita.
Desejo um Feliz dia da mãe e resto de domingo cheio de paz e saúde.
Beijinhos
:)