Lembro que foi numa tarde de chuva
escandalosamente mansa. Daquelas que a gente só quer ficar deitando ouvindo o
barulhinho da água batendo no telhado e descendo sem pressa, como uma carícia
prolongada. Nos conhecemos na rua. Eu havia saído para comprar fermento, que
tardes de chuva imploram por um bolinho de chuva.
Eu atravessava a Praça da Matriz
despretensiosamente, com fones cor de rosa sussurrando em meus ouvidos uma
música que agora me escapa o nome. Balançava a cabeça acompanhando o ritmo e
certamente estava cantarolando — que sou dessas.
Os pingos finos brincavam no meu cabelo
e eu trazia a sacola com o fermento, um pacote de salgadinho e dois pãezinhos
para o café da noite bem junto ao peito para não molhar. A distância entre os
ladrilhos da praça e o meio-fio encurtando.
Você que me faz feliz, você que me faz
cantar...
Quando pisei na pista praticamente fui
abalroada — para usar uma palavra condizente com a situação —, por um maluco
numa bicicleta desengonçada. Não sei dizer se era ele ou eu quem estava mais
distraído. Só sei que ele conseguiu parar, literalmente, em cima de mim.
A cena seguinte: a bicicleta caída com
o pneu girando no ar. Meus fones de ouvido no meio da avenida. Os cotovelos
ralados. O fermento desenhando formas bizarras que pareciam tentáculos no asfalto molhado. O doido me espremendo contra o chão. Eu
largando um sonoro puta que pariu. Pedidos de desculpas, apresentações. Me
detenho melhor na fisionomia do meu atropelador. O cara era lindo pra caralho.
A outra cena: nós dois embolados no
sofá da sala dele já meio pelados, eu um tanto grogue de um vinho barato
surgido não sei de onde, ele me dando um chupão de categoria no pescoço. O cara
era bom no negócio. Jesus, me abana! E eu no meio da função toda — pasmem —
pensando no raio do fermento, nos bolinhos de chuva natimortos e não sei por
que, ó, desgraça, que uma coisa leva à outra, fui lembrar que a ração do
Marschmallow tinha acabado.
Agora me digam qual o propósito do meu
cérebro, que só podia estar sob o comando de uma madre superiora confinada num
Carmelo há 300 anos, de pensar nisso agora, nesse exato instante? Que madre o
quê. Era obra do capeta. Não tinha outra explicação. Se bem que o coisa ruim
também devia ser chegado numa luxúria. Então fiquemos com a madre, virgem até à
raiz de todos os cabelos, pelos e pentelhos. Pudica. Recatada. Pestilenta.
Infeliz. Que nunca deu e vem atrapalhar a trepada dos outros.
O que que esse cara gostoso da porra
botou no meu vinho, ó, pai?
Num esforço sobre-humano e agora vejo
que desnecessário, falei que tinha esquecido de comprar a ração do
Marschmallow.
— Que Marschmallow — perguntou ele,
enquanto enfiava a língua dentro da minha orelha.
— Meu gato — gemi em resposta,
arrancando a camiseta dele e cravando as unhas naquelas costas musculosas.
— Deixa ficar com fome. Amanhã a gente
resolve isso.
Foi nessa hora que a madre desceu, com
hábito, rosário, escapulário, Santo Sudário — e outras coisas terminadas em
ário —, que gente que não gosta de gato não pode ser certa.
Cena pós-crédito: eu voltando pra casa
na chuva, bêbada, com meus fones, sem fermento, sem ração e sem dar.
Você que faz feliz, você que me faz
cantar...
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